ALERTA: o conteúdo desse texto descreve violência e crueldade.
Resenha nº 44: Muito Longe de Casa (Memórias de um menino-soldado) – Ishmael Beah
Olá! A resenha de hoje é sobre o livro Muito Longe de Casa, autobiografia do autor serra-leonino Ishmael Beah. Essa é uma história sobre uma infância destruída pela guerra, na qual o Ishmael não só perdeu a família, mas foi obrigado a desempenhar um papel ativo como soldado aos 13 anos.
Publicado no Brasil em 2007, este livro curto retrata Serra Leoa, um pequeno país na costa oeste do continente africano, na década de 1990. A história lembra um pouco Mayombe e Nada de Novo no Front, que também se passam em um cenário de guerra. Esse contexto também foi retratado pelo filme Diamante de Sangue.
Ishmael viveu com sua família em uma vila mineradora no interior de Serra Leoa até os 12 anos. Ele e o irmão adoravam hip-hop e tinham uma infância simples, humilde, com alguns problemas familiares – os pais eram separados –, mas alegre. Ishmael adorava a avó e os anciãos da aldeia que contavam histórias. Histórias são parte fundamental da cultura serra-leonina.
“Devemos nos esforçar para ser como a lua.” […] As pessoas sempre reclamam quando o sol as castiga demais e está intoleravelmente quente, e também quando chove demais ou está frio. Mas, ela falou, ninguém se queixa quando a lua brilha.”
Certo dia, forasteiros começaram a chegar repentinamente, quebrando a rotina daquele lugar pacato. Eles fugiam desesperados.
“Ouvíamos tantos tipos de histórias sobre a guerra que parecia que ela estava acontecendo numa terra distante e desconhecida. Somente quando os refugiados passaram a cruzar nossa cidade começamos a perceber que, na verdade, a guerra estava ocorrendo em nosso país. Famílias que haviam caminhado centenas de quilômetros relataram como seus parentes foram mortos e suas casas, queimadas. Algumas pessoas se comoveram com aquilo e ofereceram um lugar para os refugiados ficarem, mas a maioria recusou, dizendo que a guerra chegaria em algum momento até nossa cidade. As crianças dessas famílias não olhavam para nós e pulavam do chão ao menor ruído, como madeira sendo cortada ou pedras aterrissando nos telhados de estanho, arremessadas por outras crianças que caçavam pássaros com estilingues. Os adultos que vinham junto com as crianças dessas zonas de guerra perdiam-se em seus próprios pensamentos durante as conversas com os mais velhos da minha cidade. Além do cansaço e da má nutrição, era evidente que eles tinham visto alguma coisa que os atormentava, algo que nós nos recusaríamos a aceitar se nos contassem tudo.”
Sem noção da ameaça que se aproximava, os moradores permaneceram na vila. Ishmael e seu irmão foram escondidos para a vila vizinha participar de um concurso de hip-hop. Enquanto estavam fora, o exército rebelde invadiu a vila. Os meninos desejavam voltar para procurar seus familiares, mas foram advertidos pelos conhecidos que chegavam de que não restava mais nada lá e pela confusão não sabiam do paradeiro de sua família.
Ishmael e seu irmão permaneceram na vila, na casa de um amigo, mas logo tiveram que fugir para a selva e para longe dos rebeldes. Essa vila também foi atacada e eles testemunharam atos traumáticos de violência extrema. Não foram poucos os momentos de dor e violência que se seguiram desde então.
“A família de Saidu não conseguiu sair da aldeia durante o ataque. Junto com os pais e três irmãs, que tinham dezenove, dezessete e quinze anos, ele se escondeu debaixo da cama durante a noite. Pela manhã os rebeldes invadiram a casa e encontraram seus pais e as três irmãs. Saidu tinha ido ao sótão pegar o que havia de arroz para a família levar na fuga, quando os rebeldes entraram. Ele ficou no sótão, sentado, segurando a respiração e escutando os gritos das irmãs, enquanto eram estupradas pelos rebeldes. O pai gritava para que parassem, e um dos rebeldes o atingiu com a coronha da arma. A mãe de Saidu chorava e pedia perdão às filhas por tê-las colocado no mundo para serem vítimas daquela loucura.”
Ishmael fugiu para o sul, primeiro com seu irmão e alguns amigos, mas eles foram separados após uma perseguição pelos rebeldes. Depois de circular solitário pela selva, Ishmael encontra alguns colegas da escola e continua a jornada.
Eles passaram por muitos perigos e muita fome fugindo pelas florestas sem rumo, já que não existia lugar seguro. Mesmo sem os rebeldes, muitas populações do interior já tinham abandonado suas vilas e outras eram agressivas contra forasteiros, temendo pela sua própria segurança.
Com o tempo, o grupo foi ficando fraco e menor. Não havia esperança. Em certo ponto, quando Ishmael teve certeza de ter perdido toda a sua família, foi encontrado por um pelotão do exército nacional de Serra Leoa e passou a combater os rebeldes. Ele tinha 13 anos.
“Eu me via segurando um AK-47 e caminhando por uma fazenda de café com um pelotão de muitos meninos e uns poucos adultos. Íamos atacar uma cidadezinha que tinha munição e comida. Assim que saímos do cafezal, demos de cara com um grupo armado num campo de futebol vizinho às ruínas do que um dia havia sido uma aldeia. Abrimos fogo até que o último ser vivo do grupo caiu no chão. Andamos até os corpos, batendo uns nas mãos dos outros em comemoração. O grupo também era de meninos bem novos, como nós, mas não nos importamos com eles. Pegamos sua munição, sentamos sobre os corpos e começamos a comer a comida cozida que eles levavam. Ao nosso redor, sangue fresco vazava através dos buracos de bala em seus corpos.”
Ao ler as histórias do treinamento e das ações, percebe-se que não havia um propósito real além de matar antes que matassem você. Uma guerra sem sentido como tantas outras, onde se perdeu a vida de milhares de inocentes e a infância de tantas crianças que se tornaram engrenagens de uma máquina de guerra. Em 2020, 8.500 crianças participaram de conflitos armados como soldados.
Em ambos os lados, os soldados eram mantidos drogados. Isso explica a inexistência de motins e a apatia frente às barbaridades cometidas.
“Durante o dia, em vez de jogar futebol na praça da aldeia, eu me revezava entre os postos de vigilância pela aldeia, fumando maconha e cheirando brown brown, cocaína misturada com pólvora, que estava sempre espalhada pela mesa e, claro, tomando mais daquelas pílulas brancas, em que estava viciado. Elas me davam bastante energia. Na primeira vez que usei todas essas drogas ao mesmo tempo, comecei a transpirar tanto que tirei minha roupa inteira. Meu corpo chacoalhava, minha visão se tornou embaçada e perdi a audição por vários minutos. Vaguei sem rumo pela aldeia, me sentindo irrequieto porque tinha recebido, ao mesmo tempo, uma carga excepcional de energia e de torpor. Mas, depois de várias doses dessas drogas, tudo que passei a sentir foi torpor, uma dormência em relação a tudo, e tinha tanta energia que não consegui dormir durante semanas.”
Ishmael relatava diversos eventos atrozes de invasão contra vilas e combate direto com rebeldes, sob o comando de adultos. Todas essas cenas são de revirar o estômago.
A certa altura, cerca de três anos lutando como soldado, a interferência da UNICEF no conflito fez efeito. Algumas crianças-soldado foram levadas para a capital, Freetown, onde foram mantidas em um abrigo para recuperação.
O processo de recuperação era dificílimo, Ishmael conta que retornar para a sociedade civilizada foi mais difícil do que se tornar uma criança-soldado. Foi preciso de muita paciência e compaixão para ajudá-lo a superar esse período difícil. A música foi um instrumento importante desse processo.
Além de aprender a conviver, já que as crianças de lá tinham lutado em ambos os lados, esperava-se também recuperar seu emocional e recuperá-las do vício em drogas, para que pudessem ser reinseridas em uma sociedade pacificada. Os garotos resistiram, a sede da guerra estava em suas mentes, mas com muito amor e persistência dos voluntários do abrigo, alguns se recuperaram. Ishmael foi um deles.
Ishmael passou mais um tempo no abrigo e foi adotado por um tio distante que vivia na capital. Ele foi bem recebido e cuidado pela família, frequentou a escola local e repentinamente foi convidado para falar sobre o projeto da UNICEF em Nova York, em 1996.
Ishmael iria conhecer pela primeira vez o mundo fora de Serra Leoa e não sabia o que esperar. A chegada na capital Freetown já tinha impressionado o menino, mas ele não estava preparado para Nova York no inverno, não tinha nem roupas.
No evento da UNICEF, ele conheceu crianças do mundo inteiro e suas dificuldades. Ele participou de um workshop que o marcou muito, no qual Laura Simms ensinava a contar histórias de forma forte e comovente. Os olhos de Ishmael brilharam, já que contar histórias faz parte de sua cultura.
De volta a Serra Leoa, onde ele era amado pela família, novamente a guerra e a violência se aproximaram. Em 1997, Ishmael fugiu sozinho de Freetown para a Guiné, em uma nova jornada perigosa, com destino aos Estados Unidos, onde ele foi adotado por Laura Simms.
Se não fosse o acaso de Ishmael ter sido convidado pela UNICEF no ano anterior, possivelmente ele não teria a documentação necessária e não teria conhecido alguém que pudesse acolhê-lo fora de Serra Leoa, talvez nunca fôssemos conhecer a história de Ishmael e das crianças-soldado.
Apesar de Ishmael ter tido um final feliz (na medida do possível) muitos de seus amigos que participaram do projeto da UNICEF voltaram a atuar como soldados, muitos morreram. O programa fracassou em salvar essas crianças das atrocidades de uma guerra onde não há heróis.
Ishmael atua como embaixador da UNICEF desde 2007. Sua biografia é um soco no estômago. Apesar de curta, é necessário parar para se recompor várias vezes. As cenas são descritas com muitos detalhes.
Finalizo essa leitura com o coração aflito pelo que ele e outras crianças tiveram que passar. Desejo que no futuro possamos ser melhor e oferecer um lugar seguro para que elas cresçam. Desejo também que Serra Leoa se torne um país pujante e seguro para seus cidadãos.
Já conhecia essa história? Comente sobre outros livros de temática similar, como Terra Sonâmbula. Aproveite a leitura!
Ficha Técnica:
Autor: Ishmael Beah
Editora: Ediouro
Ano: 2007
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[…] Isabel, jornalista, Halajan, senhora afegã, e Yazmina, jovem afegã. Isabel tinha estado em Serra Leoa antes, então essa não era sua primeira experiência com a instabilidade da […]
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