Capa do livro Mayombe, escrito pelo angolano Pepetela.

Angola: Mayombe

Resenha nº 30: Mayombe – Pepetela

Chegou a hora de resenhar outro livro de um país africano: Angola! Hoje vou falar um pouco de Mayombe, escrito por Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Em 1997, o autor recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra, um dos prêmios mais importantes da literatura mundial.

Eu poderia dizer que esse foi um dos melhores livros que li esse ano, mas a verdade é que em 2020 a concorrência está difícil, li livros como Para Poder Viver (Coreia do Norte), Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Suécia), O Clube da Luta, Vinho e Guerra, Boca do Inferno… Um melhor que o outro.

Pepetela foi militante do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), um movimento revolucionário que lutava pela independência de Angola. Mayombe começou a ser escrito em 1970, como um comunicado de guerra do qual Pepetela ficou encarregado. 

O soldado tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo apontou a AKA. O soldado era um miúdo aterrorizado à sua frente, a uns quatro metros, as mãos fincadas na culatra que não safava a bala usada. Os dois sabiam o que se ia passar.

Esse comunicado é sobre a operação descrita nas primeiras páginas do livro, mas a frieza do comunicado de guerra incomoda o autor, que sente a necessidade de registrar o lado humano da ação.  A partir daí, Mayombe retrata o cotidiano da guerrilha e as investidas contra o exército português. 

Com Pepetela, nos embrenhamos pelo Mayombe, região de floresta tropical na Angola, junto ao Comandante Sem Medo, o Comissário, o Chefe de Operações e os combatentes. No total, havia 16 combatentes com uma base infiltrada na área dominada por portugueses. O comando ficava na cidade de Dolisie, no Congo, onde ficavam os burocratas do movimento, os depósitos e a escola.

O MPLA era um movimento de esquerda marxista, hoje é um partido e governa a Angola desde a independência em 1975. Durante a guerra, todos os combatentes recebiam formação política e buscava-se ensinar à população também. 

– Mas, camarada Comandante, não achas que há camaradas que estudam desinteressadamente?

– Crês que haja alguma coisa que se faça desinteressadamente na vida?

Em nosso grupo infiltrado no Mayombe, Teoria era o responsável por transmitir o conhecimento e cuidar dos aspectos burocráticos das missões.

O homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar.

Além da história do grupo, Pepetela faz pausas para nos contar um pouco do íntimo de alguns combatentes, como é o caso de Teoria:

EU, O NARRADOR, SOU TEORIA

Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.

Como destacado por Teoria, a miscigenação racial é algo polêmico e o faz sentir obrigado a provar seu valor, a ignorar seu medo e mostrar lealdade ao movimento. Seu caso é o mais extremo, mas em outros momentos do livro destaca-se o tribalismo como fato gerador de desunião no grupo.

Sabes o que se passa na Base? Há o campo kimbundo e o kikongo. Ambos os campos desejam a nossa ruptura, para terem um chefe de fração, pelo que entendi.

Após um período na mata, o grupo recebe novos combatentes, ainda inexperientes, mas sem suprimentos. O Comissário e o camarada Verdade foram enviados à Dolisie para exigir abastecimento e precisam encarar a lentidão da burocracia, a incompetência do responsável e sua corrupção.

Os kimbundos atribuem os erros todos ao André, mas também a ti. São os dois kikongos mais em vista. Querem pois um conflito, de modo que eu tenha de me apoiar neles contra ti. Os kikongos, por seu lado, defendem o André e querem que tu te coloques como o líder militar kikongo que expulse os kimbundos do Comando.

A situação desanda em Dolisie quando o responsável André e a companheira do Comissário, Ondina, têm um caso. A partir de então, conhecemos mais à fundo o funcionamento do movimento, as brigas de poder, a corrupção e também refletimos sobre amor e relacionamento.

O amor é uma dialética cerrada de aproximação – repúdio, de ternura e imposição. Senão cai-se na rotina, na mornez das relações e, portanto, na mediocridade.

Através de Sem Medo, que é designado para assumir temporariamente em Dolisie, Pepetela faz várias críticas ao movimento, comparando-o ao modus operandi da igreja católica.

Não deveria ser uma capela, mas é. Onde é que os dirigentes discutem em público? Não, só no seu círculo. O militante tem de entrar no círculo, pertencer à casta, isto é, tornar-se dirigente, para saber da roupa suja que se lava nas altas instâncias.

Discute-se o futuro do movimento, existe muita teoria, mas será que vão conseguir transformar em prática?

Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual.

O relato do autor tem um papel de documentação histórica da Guerra de Independência em Angola. Pepetela tinha a preocupação de que o momento não fosse profundamente compreendido, já que a história convencional é descrita de modo frio e mais distante com o passar do tempo. 

Outro objetivo é que daqui a uns tempos não haverá pessoas que tenham vivido a situação colonial por “dentro”. E toda a nova geração deverá ouvir falar, apenas. Há de haver textos de história sobre o que era o colonialismo, o que era a mentalidade do colono etc., mas forçosamente texto de história, é uma coisa fria… e as pessoas acabam por imaginar o que seria, mas não compreender profundamente, e aí é o papel do romance, fundamental, para a nova geração conseguir “viver” um pouco o que era a vida antes. Aí há também uma preocupação de registrar para a história.

SILVA, R. V. R., MATTOS, T. R., “Mayombe: presença da guerra, perspectiva histórica e memória na construção do romance”, 2015.

Em 2020, tempo de pós-verdade e relativização, talvez esse tipo de documento tenha tido algum efeito para compreensão da história.

Em resumo, adorei conhecer um pouco mais da história de Angola. Comecei até a acompanhar alguns canais de angolanos no Youtube, são muito divertidos!

O livro é curto, sem enrolações mas ao mesmo tempo profundo. Se você tem interesse em ler autores africanos, este livro de Pepetela com certeza deve ser incluído na sua lista. Aliás, esse é um dos livros disponíveis no Amazon Prime, que está saciando minha sede de livros novos, recomendo também!

Para finalizar, deixo aqui uma última citação:

Queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo o momento arranjamos desculpas para reprimir os nossos desejos.

Até a semana que vem, boas leituras!


Ficha Técnica:

Autor: Pepetela

Editora: LeYa Brasil

Ano: 2013

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