ALERTA: o conteúdo desse texto descreve violência e crueldade.
Resenha nº 24: Mutilada – Khady
A resenha de hoje, no dia da mulher, é sobre a biografia de Khady Koita, uma ativista senegalesa que luta contra a mutilação genital de meninas (FGM – Female Genital Mutilation) junto à ONU. O livro é curto, mas seu conteúdo é muito impactante.
Khady nasceu em 1959 e cresceu no Senegal, sua família vivia razoavelmente bem na cidade de Thiés, próximo da capital Dacar. Não viviam com luxos, mas tinham acesso à água e comida suficientes. Ao contar sobre os seus primeiros 13 anos de vida, Khady apresenta algumas diferenças culturais entre o ocidente e o Senegal, que internamente possui muitos grupos étnicos.
O livro destaca o peso das relações familiares sobre o indivíduo, principalmente dos homens sobre as mulheres, que tinham independência limitada. Os casamentos entre indivíduos de grupos diferentes não eram nem cogitados em sua comunidade. Khady vem de uma família muçulmana, polígama e sua educação foi confiada a uma de suas avós (seu avô tinha 3 esposas).
Por alguma razão cultural, os pais participam pouco da educação dos filhos, mas a mãe de Khady sempre fez questão de garantir que todos os filhos frequentassem a escola. Todos finalizaram o ginásio e os homens cursaram o ensino médio e a faculdade.
Quando tinha 7 anos, as avós de Khady contrataram uma mulher da casta dos ferreiros (a divisão social em castas não foi explicada, apenas citada) para realizar a excisão na menina e suas primas, a fim de “purificá-las”. O procedimento consiste em remover o clitóris das meninas com uma lâmina de gilete.
Gostaria de citar que o clitóris possui cerca de 8 mil terminações nervosas (o pênis possui cerca de 4 mil), o que explica a dor era insuportável. As meninas choravam e não conseguiam andar, ficaram 8 dias deitadas recebendo curativos até conseguir retomar suas rotinas. O ritual foi celebrado pela família com fartura de comida.
Esse ato por si só é horrível, mas em algumas regiões da África, além da remoção do clitóris, pode haver a remoção dos pequenos lábios e o orifício vaginal é costurado, deixando-se apenas um orifício para urinar e menstruar. Essa é uma prática milenar no Egito, a ONG 28 Too Many estimou em 2017 que 87,2% das mulheres entre 15 e 49 anos foram excisadas.
A maioria das pessoas que realizam essa prática o fazem por motivos religiosos, contudo, o Alcorão nunca incentivou essa prática e hoje existe um movimento dentro das lideranças muçulmanas para explicar que este ato cruel não tem nada a ver com a religião.
Outros alegam também que o procedimento preserva a mulher de ser violentada (???) e evita que ela seja infiel ao marido, já que a remoção do clitóris impede seu prazer sexual. Como esperado, essas mulheres não usufruem totalmente de sua sexualidade, a cicatriz deixada pelo procedimento brutal prejudica o prazer sexual, piora as dores durante o parto e causa até incontinência urinária.
Contudo, o tabu em torno das questões sexuais é tão intenso que ninguém fala sobre isso. O silêncio acabou por normalizar essa barbaridade, muitas mulheres nem notam que algo está faltando e Khady havia esquecido disso, só se lembrou novamente mais tarde, quando estava na França e uma bebê malinesa faleceu por hemorragia. Suas 3 primeiras filhas foram excisadas antes disso.
Vale lembrar que no Senegal há grande diversidade étnica e nem todos os grupos aderiram a esse ritual bárbaro. Inclusive uma das vizinhas de Khady critica a sua família após a excisão das meninas.
Aos 13 anos, Khady foi prometida em casamento para um primo de grau distante, do mesmo grupo étnico, mas que vivia na França. Ele se divorciou da primeira esposa após ela engravidar no Senegal, mas Khady não conheceu o noivo até o dia do casamento e nunca se sentiu atraída por ele.
O marido de Khady a estuprava e a levou para viver na França com ele. A menina ficou muito triste quando chegou por estar longe da família, mas como frequentou a escola, falava francês com facilidade e logo fez amizades na vizinhança e prestava serviço voluntário como tradutora e intérprete nos órgãos e ONGs de ajuda aos imigrantes.
Aos 20 anos, Khady já tinha 4 filhos. Seu espírito independente se rebelava contra a tirania do marido e à ignorância dos homens da comunidade, que nunca lhe davam razão e exploravam as mulheres o máximo que podiam. Khady se ressentiu por estar longe do núcleo familiar, pois no Senegal a família permanece vigilante e podem “recuperar” a moça que foi dada em casamento caso ela não seja respeitada pelo marido.
Khady ficou casada por muitos anos, teve 5 filhos com um marido que tentava podar sua independência, além de agredi-la física e psicologicamente. Quando ele trouxe uma segunda esposa, a situação piorou. Depois de muita briga e reflexão, ela decide procurar a justiça francesa para conseguir o divórcio, mas mesmo com a decisão da justiça, seu cumprimento foi muito difícil.
Este é um livro muito importante e abriu meus olhos sobre a realidade de outras mulheres ao redor do mundo. Espero que essa resenha tenha tocado você e provocado uma reflexão também. Eu já tinha lido outros livros sobre a vida dos imigrados na França (recomendo Entre os Muros da Escola, de François Bégaudeau) e a dificuldade de integração na sociedade, mas nunca do ponto de vista das mulheres.
Sobre a excisão, o corpo médico francês sabia que isso acontecia, mas para evitar conflitos culturais preferiam se reservar de criticar esses hábitos. Isso só muda quando a bebê malinesa faleceu.
A boa notícia é que existe uma cirurgia para correção da excisão. O procedimento é simples, no qual a cicatriz é reaberta e os pontos são refeitos, pois a maior parte do clitóris é interna e não é removida com a lâmina.
Assim como a autora, fico triste que esta realidade esteja longe de ser superada. Ainda hoje, apesar dos esforços da ONU, o discurso político ainda não foi transformado em prática, os chefes de estado são muito tolerantes. É importantíssimo levar a informação para as populações desses locais, sonho pelo dia em que as meninas não sejam submetidas a esse sofrimento. Que a luta continue!
Ficha Técnica:
Autor: Khady
Editora: Rocco
Edição: 1
Ano: 2005
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[…] de Yeonmi Park, uma ativista norte-coreana que fugiu do país em 2007. O livro lembra um pouco a biografia da Khady, outra ativista de direitos humanos, que teve uma grande dose de sofrimento e coragem para superar […]
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[…] vida. Esse com certeza é um dos livros mais tristes que eu já li, rivalizando com a história de Kadhy, ativista senegalesa em prol da extinção das práticas de mutilação genital […]
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[…] resenhei outros livros de africanas autobiográficos, Mutilada e Sobrevivi para Contar, mas Uma Perturbação no Ar é muito mais tranquilo em comparação a […]
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